quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Sistema de Agricultura Camponesa e Desenvolvimento Sustentável

Introdução

A preocupação com o desenvolvimento sustentável tem despertado a discussão sobre como um sistema de produção rural pode satisfazer as necessidades humanas, mantendo uma relação harmoniosa com o meio ambiente. Essa preocupação é relevante na medida em que a produção agropecuária responde por graves problemas ambientais como a contaminação da água, o comprometimento do solo, desequilíbrios ecológicos e alterações nas condições climáticas globais.
Entre os sistemas de produção rural no Brasil se diferenciam o sistema convencional de grande empresa agrícola e o sistema familiar. Esse sistema familiar é caracterizado, predominantemente, pelo sistema de agricultura camponesa, formado por núcleos familiares que mantêm pequenos lotes de terra em que a gestão e a realização do trabalho se concentram na família.
O objetivo desse trabalho é discutir os conceitos de sustentabilidade ambiental aplicados a sistemas rurais. Assim como, descrever o desenvolvimento histórico da agricultura camponesa no Brasil e avaliar se ela é potencialmente mais sustentável que a agricultura convencional.

Desenvolvimento Sustentável e Sistemas de Produção Rural
Os conceitos de desenvolvimento sustentável apresentam uma diversidade de versões que dependem do enfoque do autor ou suas convicções ideológicas. Mas a maioria deles propõe, em comum, ampliar o horizonte temporal na avaliação das ações humanas, principalmente as econômicas, incluindo uma preocupação com o meio ambiente e as gerações futuras.
O termo sustentabilidade, segundo EHLERS (1996) tem sido empregado em três aspectos: ecológico, econômico e social. E pode ser definido como o uso de tecnologias e dos recursos biofísicos, econômicos e sociais para obter serviços diretos e indiretos dos recursos naturais e, assim, satisfazer as necessidades das gerações presentes e futuras.
Segundo o mesmo autor, na agricultura, “o valor dos bens e serviços presentes deve representar mais que os valores das externalidades e dos insumos incorporados, melhorando ou pelo menos mantendo de forma indefinida a produtividade do meio biofísico e social. Alem do mais, o valor presente dever estar equitativamente distribuído entre os participantes do processo” (EHLERS, 1996. P. 178).
Para avaliarmos a sustentabilidade de um sistema produtivo com base em parâmetros ecológicos, devemos questionar pelo menos cinco aspectos (MONGE, 1997):
(I) Qual é o grau de intervenções irreversíveis sobre o meio ambiente?
(II) No caso dos recursos não-renováveis que são inevitáveis de se usar, existe algum mecanismo de reposição, mesmo que indireto?
(III) A taxa de emissão de resíduos é maior, menor ou igual à capacidade de assimilação do ecossistema?
(IV) As tecnologias empregadas favorecem o aumento do valor extraído por unidade de recurso ou favorecem a extração quantitativa de recursos?

Alem de critérios ecológicos, os parâmetros econômicos e sociais são importantes para se avaliar a sustentabilidade de um sistema agrícola. Esse deve não apenas melhorar a base natural da qual depende o sistema e fazer uso eficiente dos recursos não-renováveis, mas, a longo termo, satisfazer as necessidades humanas por alimentos e fibras; sustentar a viabilidade de operações rurais, empregando sempre que apropriado, ciclos biológicos naturais e; melhorar a vida dos agricultores e da sociedade em geral.
O sistema agrícola capitalista que predomina no mundo, embora apresente muitas especificidades locais, geralmente se caracteriza por grandes unidades produtivas; uso de insumos tecnológicos de grande porte; monocultivos e padronização genética; uso massivo de agrotóxicos, fertilizantes químicos e fontes energéticas externas; alta dependência do mercado financeiro e; o objetivo de exploração da força de trabalho e maximização de lucros.
Esse modelo agrícola tem um impacto maciço (I) na qualidade do solo, onde as tecnologias empregadas provocam a erosão, compactação e comprometimento de nutrientes e matéria orgânica; (II) da água, em que a agricultura convencional é a maior fonte de poluentes oriundos dos pesticidas, herbicidas e fertilizantes químicos; (III) nos ecossistemas, afetando o equilíbrio entre plantas e herbívoros, espécies de insetos e microorganismos e; (IV) no equilíbrio climático global, na medida em que contribui na emissão de gases responsáveis pelo efeito estufa, como o metano (liberado nas fezes de gado) e o gás carbônico (liberado na derrubada de florestas decorrente da ampliação da fronteira agrícola) (GOLD, 1999).
Os objetivos da agricultura capitalista e sua dependência do mercado financeiro reduzem a sua capacidade de se tornar uma atividade sustentável. Alem disso, as práticas intrínsecas ao próprio sistema, como grandes áreas de cultivo, monocultura e padronização genética, a imposta um ciclo de dependência de maquinário, pesticidas, herbicidas e fertilizantes químicos para garantir a produtividade.
É nesse sentido que a necessidade de se desenvolver sistemas agrícolas sustentáveis coloca em evidência a importância de se propor uma base produtiva diferente da agricultura convencional. No decorrer desse trabalho, é sugerido que a agricultura camponesa tem potencial para implantar sistemas sustentáveis, na medida em que apresenta: objetivos sociais; uma maior resiliência, flexibilidade e capacidade de adaptações às variações ambientais e; interesses concretos na adoção de práticas de manejo e sustentabilidade (WANDERLEY, 1999).

Economia Familiar e Agricultura Camponesa no Brasil
No final do século XIX e início do século XX muitas teorias econômicas antecipavam o desaparecimento da agricultura familiar. Esta seria substituída pela empresa agrícola e o pequeno produtor rural teria dois destinos prováveis: se proletarizar, ou seja, destituir-se do seu meio de produção que é a terra ou virar um agricultor capitalista. Sendo que o primeiro destino seria o mais provável para a grande maioria dos produtores.
Apesar de se observar esta tendência em ampla escala, o sistema de produção familiar não se extinguiu e, em muitos casos, se ampliou. As causas estão relacionadas à ampla capacidade de ajustamento e flexibilização que as comunidades camponesas apresentam, persistindo a mudanças nos sistemas políticos e econômicos. Nas ultimas décadas, principalmente, em países subdesenvolvidos como o Brasil, ocorreu, também, um processo de criação e recriação do campesinato devido a políticas públicas de redistribuição de terras ociosas, provocadas, principalmente, por ações de luta política dos movimentos sociais do campo.
O fato dos sistemas familiares de produção rural persistirem pode ser compreendido, ainda, de forma mais ampla, como a melhor eficiência da economia familiar de coexistir com o mercado em setores que demandam mais flexibilidade e diversificação. Em todos os sistemas econômicos contemporâneos, se observa a alocação de recursos em três sistemas que são interdependentes, mas seguem uma lógica própria: mercado, Estado e família.
As economias de mercado, assim como as de Estado e, também, a profunda influência do Estado nas economias de mercado já foram amplamente elucidadas por estudos econômicos. As economias e setores econômicos de domínio de relações familiares, no entanto, permanecem com importantes lacunas de estudos.
Em geral, para se caracterizar sistemas familiares de economia, se relacionam setores econômicos em que o Estado e o mercado, embora influenciem, tiveram pouco sucesso em hegemonizar. Um exemplo muito representativo são os cuidados domésticos e reprodutivos que mantém forte dependência de trabalho familiar. O trabalho familiar é predominante, também, na economia informal e em sistemas agrícolas tratados nesse artigo.
O domínio do trabalho e poder decisório da família e de seus objetivos diferenciais em setores da economia se mostram persistentes em sistemas econômicos contemporâneos, pois são mais eficientes e menos dispendiosos onde se demanda flexibilidade e diversificação. Os membros da família estão envolvidos num sistema particular de uso da força de trabalho que não é o assalariado, mas tem a capacidade de resolver problemas que outros tipos de economia não resolveriam (SHANIN, 2008).
A forma particular de economia familiar que coexiste com os outros sistemas econômicos e é diretamente influenciada por eles e também os influencia, é a agricultura familiar. Embora existam agricultores familiares amplamente capitalizados e inseridos no mercado capitalista, principalmente em países desenvolvidos, a forma particular desse segmento que nos interessa descrever e analisar o seu potencial para o desenvolvimento sustentável é a agricultura camponesa.
A agricultura camponesa se caracteriza por pequenas unidades produtivas, pouco capitalizadas, em que o trabalho e a gestão do empreendimento sejam essencialmente familiares. Embora sujeito a influências externas, há um significativo grau de poder decisório da família que segue a sua dinâmica interna, mantendo uma relação variável entre a auto-subsistência e a produção para o mercado local.
No Brasil, a agricultura familiar é majoritariamente camponesa e tem suas raízes históricas ligadas a cinco grupos principais: índios, negros, mestiços, brancos não herdeiros e migrantes europeus. Embora cada grupo tenha sua particularidade, que não nos interessa descrever, eles têm em comum o fato de ocuparem uma posição marginal no modelo de desenvolvimento historicamente implantado no país (ALTAFIN, 2007).
Como resultado dessa marginalização, esse segmento teve raras oportunidades de se desenvolver e apresenta elevados índices de vulnerabilidade social. Como mostra o fato de estar emparedada em 30,49% das terras cultiváveis no país e receber apenas 25,3% dos financiamentos destinados a agricultura, embora empregue 7 de cada 10 trabalhadores rurais (INCRA/FAO, 2000).
É no contexto dessa marginalização que se deve compreender a unidade camponesa como uma entidade econômica tentado sobreviver e caminhar em um mundo que constrange suas escolhas em múltiplas formas. E, assim como as demais formas de economia familiar, consegue persistir por empregar trabalho familiar de forma mais intensa e flexível e, portanto, eficiente que o sistema capitalista conseguiria explorar.
Modelo de Sistema Produtivo Camponês e o Potencial para o Desenvolvimento Sustentável
A definição formal de agricultura familiar no Brasil, conforme a legislação é: “[...] agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos: I - não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais; II - utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; III - tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento; IV - dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família”(BRASIL, 1996)

Para alem da definição formal, a polarização da agricultura camponesa consiste no fato da família deter o controle e poder decisório fundamental sobre os meios de produção e pela predominância do uso da força de trabalho familiar. Portanto, o modelo de agricultura camponesa é formado por núcleos familiares, com relativo grau de independência, onde não há uma clara separação entre a gestão e o trabalho. Em outras palavras, as mesmas pessoas que executam o trabalho, dirigem o empreendimento.
Os objetivos fundamentais da unidade camponesa estão concentrados no atendimento das necessidades do grupo doméstico e na reprodução da família nas gerações seguintes. Como esses objetivos são alcançados pelos beneficiários do esforço ou pelos seus parentes, há sincronização do trabalho com o resultado esperado, podendo se intensificar ao extremo onde há necessidades (como nas culturas intensivas ou áreas degradadas que exigem mais esforço humano) e relaxar em períodos de entressafras ou abundância.
Como o objetivo principal do empreendimento é a satisfação das necessidades do grupo doméstico e, ainda, devido ao fato de contar com recursos financeiros limitados, a agricultura camponesa comumente investe na policultura como estratégia de segurança alimentar e menor dependência de insumos externos. Nas regiões brasileiras em que a agricultura camponesa predomina, é comum as unidades desenvolverem o sistema denominado de policultura-pecuária, que integram policultivos vegetais, com pequenos animais e animais de tração ou leiteiros (Wanderley, 2006).
Na unidade camponesa, os sistemas de produção não são transferíveis e há uma íntima relação entre a disposição da força de trabalho e o curso biológico natural dos cultivos. A organização do trabalho é flexível conforme os ciclos produtivos e há uma relação inter-geracional de troca de saberes entre os membros mais experientes da família, que tem um maior tempo de observação e aprendizado dos ciclos naturais, e os mais jovens. Esse sistema informacional se sincroniza com o objetivo de garantir a reprodução da família nas gerações seguintes e formam sólidos sistemas tradicionais, etnobiológicos, de conhecimento legítimo que são peculiares a cada unidade familiar, a cada comunidade e a cada região (SHIVA, 2003).
O potencial para o desenvolvimento de sistemas sustentáveis está relacionado à intima dependência da agricultura camponesa em relação aos recursos da terra e a serviços ambientais contínuos por gerações seguintes. O horizonte de bem-estar familiar, ligados aos serviços que conseguem extrair da natureza, conduz à gestão e manejo de sistemas naturais complexos a fim de potencializar sua capacidade ambiental e garantir a qualidade de vida da geração futura.
Esse potencial se articula com o fato da agricultura camponesa ser pouco capitalizada e, em geral, empregar menos insumos externos na paisagem natural, envolver tecnologias tradicionais menos impactantes sobre o meio ambiente e conferir uma dinâmica de socialização dos bens produzidos entre os membros da família.
Esse potencial social e ecológico da unidade camponesa de se envolver em práticas sustentáveis deve se articular com o conhecimento científico e os incentivos públicos para se desenvolver num sistema efetivamente sustentável. Isso realça a importância de se desenvolver uma interface de diálogo entre os objetivos da unidade camponesa e o conhecimento e tecnologias científicas.



Conclusão
O sistema de produção camponês que coexiste com a agricultura convencional no Brasil, mesmo marginalizado pelos modelos de desenvolvimento historicamente adotados, apresenta um importante potencial de desenvolver estratégias de sustentabilidade.
A profunda dependência de serviços ambientais e a incapacidade de inferir intervenções de grande porte para recuperação ou modificação dos sistemas naturais, o despontam como segmento mais vulnerável às respostas ambientais. Enquanto seus horizontes diferenciais reforçam a diversificação produtiva e a finalidade social do empreendimento.
Nesse sentido, a pesquisa científica e os interesses comuns da sociedade por equilíbrio ecológico, devem buscar, permanentemente, o dialogo com esse segmento, entendendo o núcleo familiar camponês como um tomador de decisões de grande impacto nos sistemas ecológicos.
As práticas de desenvolvimento sustentável dependem de um profundo conhecimento dos ciclos naturais de cada localidade, da experiência produtiva dos agricultores, de incentivos públicos e do conhecimento desenvolvido pela ciência sobre a dinâmica dos ecossistemas. Para que aconteça a articulação ótima dessas variáveis, se faz necessário o empoderamento dos agricultores como tomadores de decisão sobre uma parcela ambiental e a compreensão de que as suas decisões estão intimamente ligadas com a dinâmica e os objetivos de sustentação do núcleo doméstico.

Referências Bibliográficas
ALTAFIN, Iara. Reflexões sobre o conceito de agricultura familiar. 2007 (brochura de circulação restrita)
BAGCHI, Amiya Kumar. Chayanov and Research on the Peasantry of the Developing Countries. Acessado em 10 de maio de 2009, no website: http://idsk.org/chayanov.doc.
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GOLD, Mary V. Sustainable Agriculture: Definitions and Terms. National Agriculture Library. Beltsvile, 1999.
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QUETIER, Fabien, et al. Making Ecological Knowledge Relevant for Land-use decision Makers em TIESSEN, Holm & STEWART, John W. B. Applying Ecological Knowledge to Land-use Decisions. Acessado em 11 de maio de 2009, no website: http://www.icsu-scope.org/Latest%20News/BookWEB.pdf.
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SHANIN, Teodor. Lições Camponesas.São Paulo: Expressão Popular, 2008.
SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente.P. 21-82. São Paulo: Gaia, 2003.
WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Raízes Históricas do Campesinato Brasileiro. In: TEDESCO, João Carlos (org.). Agricultura Familiar Realidades e Perspectivas. 2a. ed. Passo Fundo: EDIUPF, 1999.
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