sexta-feira, 16 de abril de 2010

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Sistema de Agricultura Camponesa e Desenvolvimento Sustentável

Introdução

A preocupação com o desenvolvimento sustentável tem despertado a discussão sobre como um sistema de produção rural pode satisfazer as necessidades humanas, mantendo uma relação harmoniosa com o meio ambiente. Essa preocupação é relevante na medida em que a produção agropecuária responde por graves problemas ambientais como a contaminação da água, o comprometimento do solo, desequilíbrios ecológicos e alterações nas condições climáticas globais.
Entre os sistemas de produção rural no Brasil se diferenciam o sistema convencional de grande empresa agrícola e o sistema familiar. Esse sistema familiar é caracterizado, predominantemente, pelo sistema de agricultura camponesa, formado por núcleos familiares que mantêm pequenos lotes de terra em que a gestão e a realização do trabalho se concentram na família.
O objetivo desse trabalho é discutir os conceitos de sustentabilidade ambiental aplicados a sistemas rurais. Assim como, descrever o desenvolvimento histórico da agricultura camponesa no Brasil e avaliar se ela é potencialmente mais sustentável que a agricultura convencional.

Desenvolvimento Sustentável e Sistemas de Produção Rural
Os conceitos de desenvolvimento sustentável apresentam uma diversidade de versões que dependem do enfoque do autor ou suas convicções ideológicas. Mas a maioria deles propõe, em comum, ampliar o horizonte temporal na avaliação das ações humanas, principalmente as econômicas, incluindo uma preocupação com o meio ambiente e as gerações futuras.
O termo sustentabilidade, segundo EHLERS (1996) tem sido empregado em três aspectos: ecológico, econômico e social. E pode ser definido como o uso de tecnologias e dos recursos biofísicos, econômicos e sociais para obter serviços diretos e indiretos dos recursos naturais e, assim, satisfazer as necessidades das gerações presentes e futuras.
Segundo o mesmo autor, na agricultura, “o valor dos bens e serviços presentes deve representar mais que os valores das externalidades e dos insumos incorporados, melhorando ou pelo menos mantendo de forma indefinida a produtividade do meio biofísico e social. Alem do mais, o valor presente dever estar equitativamente distribuído entre os participantes do processo” (EHLERS, 1996. P. 178).
Para avaliarmos a sustentabilidade de um sistema produtivo com base em parâmetros ecológicos, devemos questionar pelo menos cinco aspectos (MONGE, 1997):
(I) Qual é o grau de intervenções irreversíveis sobre o meio ambiente?
(II) No caso dos recursos não-renováveis que são inevitáveis de se usar, existe algum mecanismo de reposição, mesmo que indireto?
(III) A taxa de emissão de resíduos é maior, menor ou igual à capacidade de assimilação do ecossistema?
(IV) As tecnologias empregadas favorecem o aumento do valor extraído por unidade de recurso ou favorecem a extração quantitativa de recursos?

Alem de critérios ecológicos, os parâmetros econômicos e sociais são importantes para se avaliar a sustentabilidade de um sistema agrícola. Esse deve não apenas melhorar a base natural da qual depende o sistema e fazer uso eficiente dos recursos não-renováveis, mas, a longo termo, satisfazer as necessidades humanas por alimentos e fibras; sustentar a viabilidade de operações rurais, empregando sempre que apropriado, ciclos biológicos naturais e; melhorar a vida dos agricultores e da sociedade em geral.
O sistema agrícola capitalista que predomina no mundo, embora apresente muitas especificidades locais, geralmente se caracteriza por grandes unidades produtivas; uso de insumos tecnológicos de grande porte; monocultivos e padronização genética; uso massivo de agrotóxicos, fertilizantes químicos e fontes energéticas externas; alta dependência do mercado financeiro e; o objetivo de exploração da força de trabalho e maximização de lucros.
Esse modelo agrícola tem um impacto maciço (I) na qualidade do solo, onde as tecnologias empregadas provocam a erosão, compactação e comprometimento de nutrientes e matéria orgânica; (II) da água, em que a agricultura convencional é a maior fonte de poluentes oriundos dos pesticidas, herbicidas e fertilizantes químicos; (III) nos ecossistemas, afetando o equilíbrio entre plantas e herbívoros, espécies de insetos e microorganismos e; (IV) no equilíbrio climático global, na medida em que contribui na emissão de gases responsáveis pelo efeito estufa, como o metano (liberado nas fezes de gado) e o gás carbônico (liberado na derrubada de florestas decorrente da ampliação da fronteira agrícola) (GOLD, 1999).
Os objetivos da agricultura capitalista e sua dependência do mercado financeiro reduzem a sua capacidade de se tornar uma atividade sustentável. Alem disso, as práticas intrínsecas ao próprio sistema, como grandes áreas de cultivo, monocultura e padronização genética, a imposta um ciclo de dependência de maquinário, pesticidas, herbicidas e fertilizantes químicos para garantir a produtividade.
É nesse sentido que a necessidade de se desenvolver sistemas agrícolas sustentáveis coloca em evidência a importância de se propor uma base produtiva diferente da agricultura convencional. No decorrer desse trabalho, é sugerido que a agricultura camponesa tem potencial para implantar sistemas sustentáveis, na medida em que apresenta: objetivos sociais; uma maior resiliência, flexibilidade e capacidade de adaptações às variações ambientais e; interesses concretos na adoção de práticas de manejo e sustentabilidade (WANDERLEY, 1999).

Economia Familiar e Agricultura Camponesa no Brasil
No final do século XIX e início do século XX muitas teorias econômicas antecipavam o desaparecimento da agricultura familiar. Esta seria substituída pela empresa agrícola e o pequeno produtor rural teria dois destinos prováveis: se proletarizar, ou seja, destituir-se do seu meio de produção que é a terra ou virar um agricultor capitalista. Sendo que o primeiro destino seria o mais provável para a grande maioria dos produtores.
Apesar de se observar esta tendência em ampla escala, o sistema de produção familiar não se extinguiu e, em muitos casos, se ampliou. As causas estão relacionadas à ampla capacidade de ajustamento e flexibilização que as comunidades camponesas apresentam, persistindo a mudanças nos sistemas políticos e econômicos. Nas ultimas décadas, principalmente, em países subdesenvolvidos como o Brasil, ocorreu, também, um processo de criação e recriação do campesinato devido a políticas públicas de redistribuição de terras ociosas, provocadas, principalmente, por ações de luta política dos movimentos sociais do campo.
O fato dos sistemas familiares de produção rural persistirem pode ser compreendido, ainda, de forma mais ampla, como a melhor eficiência da economia familiar de coexistir com o mercado em setores que demandam mais flexibilidade e diversificação. Em todos os sistemas econômicos contemporâneos, se observa a alocação de recursos em três sistemas que são interdependentes, mas seguem uma lógica própria: mercado, Estado e família.
As economias de mercado, assim como as de Estado e, também, a profunda influência do Estado nas economias de mercado já foram amplamente elucidadas por estudos econômicos. As economias e setores econômicos de domínio de relações familiares, no entanto, permanecem com importantes lacunas de estudos.
Em geral, para se caracterizar sistemas familiares de economia, se relacionam setores econômicos em que o Estado e o mercado, embora influenciem, tiveram pouco sucesso em hegemonizar. Um exemplo muito representativo são os cuidados domésticos e reprodutivos que mantém forte dependência de trabalho familiar. O trabalho familiar é predominante, também, na economia informal e em sistemas agrícolas tratados nesse artigo.
O domínio do trabalho e poder decisório da família e de seus objetivos diferenciais em setores da economia se mostram persistentes em sistemas econômicos contemporâneos, pois são mais eficientes e menos dispendiosos onde se demanda flexibilidade e diversificação. Os membros da família estão envolvidos num sistema particular de uso da força de trabalho que não é o assalariado, mas tem a capacidade de resolver problemas que outros tipos de economia não resolveriam (SHANIN, 2008).
A forma particular de economia familiar que coexiste com os outros sistemas econômicos e é diretamente influenciada por eles e também os influencia, é a agricultura familiar. Embora existam agricultores familiares amplamente capitalizados e inseridos no mercado capitalista, principalmente em países desenvolvidos, a forma particular desse segmento que nos interessa descrever e analisar o seu potencial para o desenvolvimento sustentável é a agricultura camponesa.
A agricultura camponesa se caracteriza por pequenas unidades produtivas, pouco capitalizadas, em que o trabalho e a gestão do empreendimento sejam essencialmente familiares. Embora sujeito a influências externas, há um significativo grau de poder decisório da família que segue a sua dinâmica interna, mantendo uma relação variável entre a auto-subsistência e a produção para o mercado local.
No Brasil, a agricultura familiar é majoritariamente camponesa e tem suas raízes históricas ligadas a cinco grupos principais: índios, negros, mestiços, brancos não herdeiros e migrantes europeus. Embora cada grupo tenha sua particularidade, que não nos interessa descrever, eles têm em comum o fato de ocuparem uma posição marginal no modelo de desenvolvimento historicamente implantado no país (ALTAFIN, 2007).
Como resultado dessa marginalização, esse segmento teve raras oportunidades de se desenvolver e apresenta elevados índices de vulnerabilidade social. Como mostra o fato de estar emparedada em 30,49% das terras cultiváveis no país e receber apenas 25,3% dos financiamentos destinados a agricultura, embora empregue 7 de cada 10 trabalhadores rurais (INCRA/FAO, 2000).
É no contexto dessa marginalização que se deve compreender a unidade camponesa como uma entidade econômica tentado sobreviver e caminhar em um mundo que constrange suas escolhas em múltiplas formas. E, assim como as demais formas de economia familiar, consegue persistir por empregar trabalho familiar de forma mais intensa e flexível e, portanto, eficiente que o sistema capitalista conseguiria explorar.
Modelo de Sistema Produtivo Camponês e o Potencial para o Desenvolvimento Sustentável
A definição formal de agricultura familiar no Brasil, conforme a legislação é: “[...] agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos: I - não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais; II - utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; III - tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento; IV - dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família”(BRASIL, 1996)

Para alem da definição formal, a polarização da agricultura camponesa consiste no fato da família deter o controle e poder decisório fundamental sobre os meios de produção e pela predominância do uso da força de trabalho familiar. Portanto, o modelo de agricultura camponesa é formado por núcleos familiares, com relativo grau de independência, onde não há uma clara separação entre a gestão e o trabalho. Em outras palavras, as mesmas pessoas que executam o trabalho, dirigem o empreendimento.
Os objetivos fundamentais da unidade camponesa estão concentrados no atendimento das necessidades do grupo doméstico e na reprodução da família nas gerações seguintes. Como esses objetivos são alcançados pelos beneficiários do esforço ou pelos seus parentes, há sincronização do trabalho com o resultado esperado, podendo se intensificar ao extremo onde há necessidades (como nas culturas intensivas ou áreas degradadas que exigem mais esforço humano) e relaxar em períodos de entressafras ou abundância.
Como o objetivo principal do empreendimento é a satisfação das necessidades do grupo doméstico e, ainda, devido ao fato de contar com recursos financeiros limitados, a agricultura camponesa comumente investe na policultura como estratégia de segurança alimentar e menor dependência de insumos externos. Nas regiões brasileiras em que a agricultura camponesa predomina, é comum as unidades desenvolverem o sistema denominado de policultura-pecuária, que integram policultivos vegetais, com pequenos animais e animais de tração ou leiteiros (Wanderley, 2006).
Na unidade camponesa, os sistemas de produção não são transferíveis e há uma íntima relação entre a disposição da força de trabalho e o curso biológico natural dos cultivos. A organização do trabalho é flexível conforme os ciclos produtivos e há uma relação inter-geracional de troca de saberes entre os membros mais experientes da família, que tem um maior tempo de observação e aprendizado dos ciclos naturais, e os mais jovens. Esse sistema informacional se sincroniza com o objetivo de garantir a reprodução da família nas gerações seguintes e formam sólidos sistemas tradicionais, etnobiológicos, de conhecimento legítimo que são peculiares a cada unidade familiar, a cada comunidade e a cada região (SHIVA, 2003).
O potencial para o desenvolvimento de sistemas sustentáveis está relacionado à intima dependência da agricultura camponesa em relação aos recursos da terra e a serviços ambientais contínuos por gerações seguintes. O horizonte de bem-estar familiar, ligados aos serviços que conseguem extrair da natureza, conduz à gestão e manejo de sistemas naturais complexos a fim de potencializar sua capacidade ambiental e garantir a qualidade de vida da geração futura.
Esse potencial se articula com o fato da agricultura camponesa ser pouco capitalizada e, em geral, empregar menos insumos externos na paisagem natural, envolver tecnologias tradicionais menos impactantes sobre o meio ambiente e conferir uma dinâmica de socialização dos bens produzidos entre os membros da família.
Esse potencial social e ecológico da unidade camponesa de se envolver em práticas sustentáveis deve se articular com o conhecimento científico e os incentivos públicos para se desenvolver num sistema efetivamente sustentável. Isso realça a importância de se desenvolver uma interface de diálogo entre os objetivos da unidade camponesa e o conhecimento e tecnologias científicas.



Conclusão
O sistema de produção camponês que coexiste com a agricultura convencional no Brasil, mesmo marginalizado pelos modelos de desenvolvimento historicamente adotados, apresenta um importante potencial de desenvolver estratégias de sustentabilidade.
A profunda dependência de serviços ambientais e a incapacidade de inferir intervenções de grande porte para recuperação ou modificação dos sistemas naturais, o despontam como segmento mais vulnerável às respostas ambientais. Enquanto seus horizontes diferenciais reforçam a diversificação produtiva e a finalidade social do empreendimento.
Nesse sentido, a pesquisa científica e os interesses comuns da sociedade por equilíbrio ecológico, devem buscar, permanentemente, o dialogo com esse segmento, entendendo o núcleo familiar camponês como um tomador de decisões de grande impacto nos sistemas ecológicos.
As práticas de desenvolvimento sustentável dependem de um profundo conhecimento dos ciclos naturais de cada localidade, da experiência produtiva dos agricultores, de incentivos públicos e do conhecimento desenvolvido pela ciência sobre a dinâmica dos ecossistemas. Para que aconteça a articulação ótima dessas variáveis, se faz necessário o empoderamento dos agricultores como tomadores de decisão sobre uma parcela ambiental e a compreensão de que as suas decisões estão intimamente ligadas com a dinâmica e os objetivos de sustentação do núcleo doméstico.

Referências Bibliográficas
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GOLD, Mary V. Sustainable Agriculture: Definitions and Terms. National Agriculture Library. Beltsvile, 1999.
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QUETIER, Fabien, et al. Making Ecological Knowledge Relevant for Land-use decision Makers em TIESSEN, Holm & STEWART, John W. B. Applying Ecological Knowledge to Land-use Decisions. Acessado em 11 de maio de 2009, no website: http://www.icsu-scope.org/Latest%20News/BookWEB.pdf.
RIECHMANN, Jorge. Desarrollo sostenible: la lucha por la interpretación em J. Reichman, et al. De la Economía a la Ecología. Editora Trotta S.A e Fundación 10 de Mayo. Valladolid, 1995.
RIBAS, Rafael Perez et al. A avaliação da sustentabilidade de agricultores extrativistas: uma evidência amostral na encosta Atlântica do Rio Grande do Sul. II Encontro daANPPAS. São Paulo, 2004
SHANIN, Teodor. Lições Camponesas.São Paulo: Expressão Popular, 2008.
SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente.P. 21-82. São Paulo: Gaia, 2003.
WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Raízes Históricas do Campesinato Brasileiro. In: TEDESCO, João Carlos (org.). Agricultura Familiar Realidades e Perspectivas. 2a. ed. Passo Fundo: EDIUPF, 1999.
VERDEJO, Miguel Expósito Verdejo. Diagnóstico Rural Participativo. P. 4-19. Brasília: MDA, 2006.

Marxismo e o Problema Fundamental da Exploração do Trabalho



A teoria e o método filosófico concebidos por Karl Heinrich Marx e seu parceiro de toda vida Friederich Engels, constituem uma complexa obra abrangendo e influenciando os mais diversificados campos do conhecimento, como economia, filosofia, ciências naturais, antropologia, história etc.
Genericamente apresentam-se, no marxismo, as condições materiais e as relações sociais das pessoas como determinantes, embora não exclusiva e nem mecanicamente, na formação da consciência que o indivíduo apresenta de si próprio e dos demais integrantes da sociedade. Essas relações são apresentadas como passageiras e determinadas apenas em perspectivas históricas, sendo o conflito de interesses e a luta de classes, perenes aonde há distribuição desigual e apropriação privada, o fator dinâmico que relativiza as formações sociais pré-existentes e cria, ao longo da história, mudanças na distribuição de riquezas e poder, na posição social ocupada pelos indivíduos, no antagonismo entre grupos, etnias, classes, castas etc. ou seja, constitui a história propriamente dita.
Esse conflito na base material da sociedade, na matéria e em tudo que é palpável e representável a partir da nossa percepção e intuição do real, é, no marxismo, originado de opostos. A natureza, a sociedade, a consciência, em sumo, tudo que existe, seria formado pela unidade de opostos, pela síntese de elementos contraditórios, sendo essa contradição responsável pelo movimento.
Essas contradições não constituem, no entanto, fatos isolados, espontâneos, criados do nada. Mas estão intimamente ligados no espaço-tempo, sendo impossíveis de separar de seu passado e de seu futuro. Ou seja, são conseqüências de eventos passados e desembocam em construções futuras. O que a priori se assemelha a uma teoria determinista, é a própria negação científica dela, pois o número de eventos é infinito e inapreensíveis nas limitações correntes do conhecimento humano, e cada um determina o todo, sendo também determinado por ele.
O marxismo concebe a realidade como um todo absoluto e inseparável na prática, pois, a soma das relações entre as coisas e não de seus componentes individuais, alienados, é o que determina o resultado final. Ou seja, ao separar algum elemento do todo, mudamos tanto o elemento quanto o todo. Aí ele diverge com a metafísica que concebe o mundo como composto pela soma de partes individuais, cabendo ao conhecimento decompor e descobrir a “essência” de cada coisa.
Portanto, para o marxismo, cabe estudar como as coisas se inter-relacionam no espaço e no tempo. Aplicando isso à sociedade, Marx dedicou-se em expor a relação entre o ser humano e a natureza, a sua produção, o seu consumo, a sua troca e a sua distribuição, isso na perspectiva histórica e contemporânea do capitalismo. Mas ele não seguiu uma ordem aleatória, caótica de conceituação dos elementos constitutivos do capitalismo, mas se propôs a investigar e descobrir a fisiologia concreta de um problema a muito esfumaçado pelo sistema: a exploração do trabalho.
O trabalho, no modo de produção capitalista seria livre, vendido à vontade e gosto do trabalhador por intermédio de um contrato, não existiria, portanto, alegavam os entusiastas da economia política burguesa, exploração propriamente dita. No comércio, eram todos iguais, se relacionavam como tais, diferente da sombria idade média aonde a “elite parasita” se apropriava diretamente da produção do “servo” e conferia a este um regime jurídico diferenciado, tido como inferior de nascença, sujeito aos desmandos do senhor feudal devido a um condicionamento divino.
A Revolução Francesa e suas congêneres haviam firmado a igualdade jurídica de todos os homens¹, o direito à liberdade, à propriedade, ao livre comércio e a todos os valores tidos como inalienáveis na ótica do bom cidadão burguês. O desenvolvimento das forças produtivas na revolução industrial havia incrementado as riquezas da humanidade a limites nunca antes sonhados e a indústria capitalista era o batalhão de frente do prenuncio de um mundo livre, “iluminado”.
Mas, em contraste, a ampla maioria da população vivia sob condições miseráveis, trabalhavam horas infindas, eram expostos a um regime ditatorial de trabalho no galpão mal-iluminado das máquinas capitalistas, viviam em moradias insalubres, amontoados urbanos, cortiços e mal lucravam da nunca antes vista riqueza da humanidade que não ser a eternização de sua miséria.
Mas o discurso da economia dominante era procedente, ninguém era forçado a trabalhar. Não haviam capangas “bloqueando” a saída da fábrica, com “chibatas” disciplinando o trabalho, todos eram livres e os empresários apenas se apropriavam do que era justo de tempo de trabalho, previamente acordado com o trabalhador e previsto em contrato.
Coube a Marx a desmistificação do mecanismo de exploração do trabalho e a sua sistematização científica. Partindo de Ricardo, que foi quem, antes dele, mais se aprofundou na interpretação da economia política do sistema, Marx define o valor de uma mercadoria, ou seja, a quantidade de outra mercadoria pela qual ela pode ser proporcionalmente trocada, como sendo a medida da quantidade de trabalho necessário para sua produção.
Medido ao longo do tempo, o valor reflete o caráter bivalente da mercadoria. De um lado ela é algo socialmente útil, socialmente desejada e só é trocada como tal. De nada adiantaria passar infinitas horas produzindo uma mercadoria que não será comprada por ninguém. Pelo outro lado, ela é trabalho humano cristalizado. Não só trabalho especializado qualitativamente, mas, na troca, o valor é a medida do trabalho abstrato, meramente quantitativo, caracterizado por ser trabalho humano apenas. E o valor é o mínimo de esforço, medido ao longo do tempo que uma sociedade leva a produzir um bem socialmente útil.
Esse esforço de produção, ou seja, o trabalho humano é uniformizado, comum a todas as mercadorias, sendo, portanto, diretamente permutável. As mercadorias e suas diversidades de usos, formas e cores, têm em comum o fato de serem resultado de esforço humano, dispêndio de músculos, neurônios, ATP etc. Essa unidade-padrão das trocas leva à adoção, ao longo do desenvolvimento histórico, de uma mercadoria que expressa esse valor em todas as demais mercadorias, essa mercadoria exerce o papel de dinheiro.
O produto do trabalho, portanto, não é mais permutado diretamente no mercado, mas por intermédio do dinheiro. Tudo que é produzido passa a ter seu valor expresso em termos dessa mercadoria universal e a posse dela passa a ser a condição necessária e suficiente para “usar” qualquer outra mercadoria disponível no mercado.
A intermediação do dinheiro nas relações de troca desenvolve o que Marx intitula o “fetichismo da mercadoria”. As coisas, sendo mero produto do trabalho humano, se relacionam com outras coisas, também produtos do trabalho humano, como se fossem entes autônomos e não a expressão de uma formação social. O produtor, no mercado, se preocupa em vender a sua mercadoria, obter dinheiro e com ele satisfazer o seu desejo individual por uma terceira mercadoria a qual consume. Ou seja, a relação entre produtores e consumidores é uma relação baseada na auto-satisfação. O produtor não produz o que imagina ser necessário à sociedade ou ao seu “próximo”, mas o que vai satisfazer a sua própria demanda imediata por dinheiro, que por sua vez representa o conforto de poder consumir qualquer outra mercadoria.Nas palavras de Marx: “Há uma relação física entre coisas físicas. Mas, a forma mercadoria e a relação de valor entre os produtos do trabalho, a qual caracteriza essa forma, nada tem a ver com a natureza física desses produtos nem com as relações materiais dela decorrentes. Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre as coisas. Para encontrar um símile, temos de recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantém relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isto de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias”.
O desenvolvimento do comércio e as condições históricas ligadas ao desenvolvimento da indústria capitalista, desenvolve exponencialmente uma progressiva mercantilização da vida. Todas as relações humanas, morais e carnais são concebidas na esfera do mercado. “A produção de mercadorias e o comércio, forma desenvolvida da circulação de mercadorias, constituem as relações históricas que dão origem ao capital”.
Ocorre, com o desenvolvimento da indústria capitalista, uma metamorfose nas relações de troca. O valor de uso de todas as mercadorias, com exceção do dinheiro, deixa de ser o ponto de partida da produção. A produção se inicia com o dinheiro e termina com ele também. Mas não tautologicamente, com o dinheiro pelo mesmo dinheiro de antes, mas o dinheiro incrementado, capitalizado. As relações econômicas seguem, então, a forma Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro, sendo este ultimo, dinheiro capitalizado, incrementado, ou seja, D – M – D'.
A nuvem de fumaça que interpõe a economia clássica da realidade é justamente o mecanismo de capitalização do dinheiro. Para que o dinheiro se multiplique, o capitalista tem que encontrar no mercado uma mercadoria especial “cujo valor-de-uso possua a propriedade peculiar de ser fonte de valor, de modo que consumi-la seja realmente encarnar trabalho, criar valor, portanto.” E essa mercadoria, ele encontra, é o trabalho humano.
A fonte fundamental de capital, ou seja, a fonte de ampliação de valor, é o trabalho humano que o capitalista compra, basicamente, pelo valor de sua manutenção. O que o capitalista adquire é a força de trabalho, em troca da reposição de suas necessidades básicas. Mas é sabido que há muito tempo a evolução das forças produtivas permitiram à humanidade a produção de excedentes. Somente em formas primitivas de agricultura e economia natural, as necessidades humanas consumiam todo o tempo de todos os humanos. Com o estágio desenvolvido da indústria capitalista, as necessidades de produção e reprodução do trabalho, constituem nada mais que uma fração do dia de trabalho do trabalhador, sendo todo o tempo restante extorquido pelo capitalista.
A exploração do trabalho, portanto, é a condição essencial do lucro capitalista. Diferente da economia vulgar e mesmo a escola austríaca contemporânea que identificam a realização do lucro como ato de puro comércio, extorsão do consumidor ou prejuízo do produtor. Segundo Marx, qualquer venda ou compra acima do valor representa a perda de um lado e ganho do outro, não havendo, portanto ganho real no conjunto.
O teorema fundamental da economia marxista, que apresenta interessantes provas econométricas², por exemplo, a apresentada pelo economista japonês Michio Morishima, é o de que a exploração de trabalho excedente é a condição essencial de lucro positivo. Isso, portanto, se desenha como a solução prática do problema fundamental perseguido por Marx e o seu desdobramento atinge os campos mais interessantes da filosofia e teoria política ao permitir a interpretação das estruturas sociais a partir da correlação de forças e o conflito de interesses entre o capital e o trabalho.
Notas:
1. A igualdade entre homens e mulheres, mesmo perante a lei, não existe nem na maioria das sociedades liberais da atualidade, muito menos no tempo em que Marx escreveu a sua obra.
2. Assim como a maior parte das provas produzidas pela economia tem pouco dinamismo empírico, apresentando, do contrário, uma superioridade retórica em relação a teorias adversárias, uma ampla parcela da economia marxista apresenta uma fecundidade de teoremas e construções abstratas de onde derivam as provas de suas leis econômicas. Entretanto, Marx não é cientificista, neutro e nem propõe uma objetividade isenta a suas teorias. No decorrer de sua obra, é sensível opções arbitrárias pelo elemento humano e pela ética hegeliana.