A teoria e o método filosófico concebidos por Karl Heinrich Marx e seu parceiro de toda vida Friederich Engels, constituem uma complexa obra abrangendo e influenciando os mais diversificados campos do conhecimento, como economia, filosofia, ciências naturais, antropologia, história etc.
Genericamente apresentam-se, no marxismo, as condições materiais e as relações sociais das pessoas como determinantes, embora não exclusiva e nem mecanicamente, na formação da consciência que o indivíduo apresenta de si próprio e dos demais integrantes da sociedade. Essas relações são apresentadas como passageiras e determinadas apenas em perspectivas históricas, sendo o conflito de interesses e a luta de classes, perenes aonde há distribuição desigual e apropriação privada, o fator dinâmico que relativiza as formações sociais pré-existentes e cria, ao longo da história, mudanças na distribuição de riquezas e poder, na posição social ocupada pelos indivíduos, no antagonismo entre grupos, etnias, classes, castas etc. ou seja, constitui a história propriamente dita.
Esse conflito na base material da sociedade, na matéria e em tudo que é palpável e representável a partir da nossa percepção e intuição do real, é, no marxismo, originado de opostos. A natureza, a sociedade, a consciência, em sumo, tudo que existe, seria formado pela unidade de opostos, pela síntese de elementos contraditórios, sendo essa contradição responsável pelo movimento.
Essas contradições não constituem, no entanto, fatos isolados, espontâneos, criados do nada. Mas estão intimamente ligados no espaço-tempo, sendo impossíveis de separar de seu passado e de seu futuro. Ou seja, são conseqüências de eventos passados e desembocam em construções futuras. O que a priori se assemelha a uma teoria determinista, é a própria negação científica dela, pois o número de eventos é infinito e inapreensíveis nas limitações correntes do conhecimento humano, e cada um determina o todo, sendo também determinado por ele.
O marxismo concebe a realidade como um todo absoluto e inseparável na prática, pois, a soma das relações entre as coisas e não de seus componentes individuais, alienados, é o que determina o resultado final. Ou seja, ao separar algum elemento do todo, mudamos tanto o elemento quanto o todo. Aí ele diverge com a metafísica que concebe o mundo como composto pela soma de partes individuais, cabendo ao conhecimento decompor e descobrir a “essência” de cada coisa.
Portanto, para o marxismo, cabe estudar como as coisas se inter-relacionam no espaço e no tempo. Aplicando isso à sociedade, Marx dedicou-se em expor a relação entre o ser humano e a natureza, a sua produção, o seu consumo, a sua troca e a sua distribuição, isso na perspectiva histórica e contemporânea do capitalismo. Mas ele não seguiu uma ordem aleatória, caótica de conceituação dos elementos constitutivos do capitalismo, mas se propôs a investigar e descobrir a fisiologia concreta de um problema a muito esfumaçado pelo sistema: a exploração do trabalho.
O trabalho, no modo de produção capitalista seria livre, vendido à vontade e gosto do trabalhador por intermédio de um contrato, não existiria, portanto, alegavam os entusiastas da economia política burguesa, exploração propriamente dita. No comércio, eram todos iguais, se relacionavam como tais, diferente da sombria idade média aonde a “elite parasita” se apropriava diretamente da produção do “servo” e conferia a este um regime jurídico diferenciado, tido como inferior de nascença, sujeito aos desmandos do senhor feudal devido a um condicionamento divino.
A Revolução Francesa e suas congêneres haviam firmado a igualdade jurídica de todos os homens¹, o direito à liberdade, à propriedade, ao livre comércio e a todos os valores tidos como inalienáveis na ótica do bom cidadão burguês. O desenvolvimento das forças produtivas na revolução industrial havia incrementado as riquezas da humanidade a limites nunca antes sonhados e a indústria capitalista era o batalhão de frente do prenuncio de um mundo livre, “iluminado”.
Mas, em contraste, a ampla maioria da população vivia sob condições miseráveis, trabalhavam horas infindas, eram expostos a um regime ditatorial de trabalho no galpão mal-iluminado das máquinas capitalistas, viviam em moradias insalubres, amontoados urbanos, cortiços e mal lucravam da nunca antes vista riqueza da humanidade que não ser a eternização de sua miséria.
Mas o discurso da economia dominante era procedente, ninguém era forçado a trabalhar. Não haviam capangas “bloqueando” a saída da fábrica, com “chibatas” disciplinando o trabalho, todos eram livres e os empresários apenas se apropriavam do que era justo de tempo de trabalho, previamente acordado com o trabalhador e previsto em contrato.
Coube a Marx a desmistificação do mecanismo de exploração do trabalho e a sua sistematização científica. Partindo de Ricardo, que foi quem, antes dele, mais se aprofundou na interpretação da economia política do sistema, Marx define o valor de uma mercadoria, ou seja, a quantidade de outra mercadoria pela qual ela pode ser proporcionalmente trocada, como sendo a medida da quantidade de trabalho necessário para sua produção.
Medido ao longo do tempo, o valor reflete o caráter bivalente da mercadoria. De um lado ela é algo socialmente útil, socialmente desejada e só é trocada como tal. De nada adiantaria passar infinitas horas produzindo uma mercadoria que não será comprada por ninguém. Pelo outro lado, ela é trabalho humano cristalizado. Não só trabalho especializado qualitativamente, mas, na troca, o valor é a medida do trabalho abstrato, meramente quantitativo, caracterizado por ser trabalho humano apenas. E o valor é o mínimo de esforço, medido ao longo do tempo que uma sociedade leva a produzir um bem socialmente útil.
Esse esforço de produção, ou seja, o trabalho humano é uniformizado, comum a todas as mercadorias, sendo, portanto, diretamente permutável. As mercadorias e suas diversidades de usos, formas e cores, têm em comum o fato de serem resultado de esforço humano, dispêndio de músculos, neurônios, ATP etc. Essa unidade-padrão das trocas leva à adoção, ao longo do desenvolvimento histórico, de uma mercadoria que expressa esse valor em todas as demais mercadorias, essa mercadoria exerce o papel de dinheiro.
O produto do trabalho, portanto, não é mais permutado diretamente no mercado, mas por intermédio do dinheiro. Tudo que é produzido passa a ter seu valor expresso em termos dessa mercadoria universal e a posse dela passa a ser a condição necessária e suficiente para “usar” qualquer outra mercadoria disponível no mercado.
A intermediação do dinheiro nas relações de troca desenvolve o que Marx intitula o “fetichismo da mercadoria”. As coisas, sendo mero produto do trabalho humano, se relacionam com outras coisas, também produtos do trabalho humano, como se fossem entes autônomos e não a expressão de uma formação social. O produtor, no mercado, se preocupa em vender a sua mercadoria, obter dinheiro e com ele satisfazer o seu desejo individual por uma terceira mercadoria a qual consume. Ou seja, a relação entre produtores e consumidores é uma relação baseada na auto-satisfação. O produtor não produz o que imagina ser necessário à sociedade ou ao seu “próximo”, mas o que vai satisfazer a sua própria demanda imediata por dinheiro, que por sua vez representa o conforto de poder consumir qualquer outra mercadoria.Nas palavras de Marx: “Há uma relação física entre coisas físicas. Mas, a forma mercadoria e a relação de valor entre os produtos do trabalho, a qual caracteriza essa forma, nada tem a ver com a natureza física desses produtos nem com as relações materiais dela decorrentes. Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre as coisas. Para encontrar um símile, temos de recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantém relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isto de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias”.
O desenvolvimento do comércio e as condições históricas ligadas ao desenvolvimento da indústria capitalista, desenvolve exponencialmente uma progressiva mercantilização da vida. Todas as relações humanas, morais e carnais são concebidas na esfera do mercado. “A produção de mercadorias e o comércio, forma desenvolvida da circulação de mercadorias, constituem as relações históricas que dão origem ao capital”.
Ocorre, com o desenvolvimento da indústria capitalista, uma metamorfose nas relações de troca. O valor de uso de todas as mercadorias, com exceção do dinheiro, deixa de ser o ponto de partida da produção. A produção se inicia com o dinheiro e termina com ele também. Mas não tautologicamente, com o dinheiro pelo mesmo dinheiro de antes, mas o dinheiro incrementado, capitalizado. As relações econômicas seguem, então, a forma Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro, sendo este ultimo, dinheiro capitalizado, incrementado, ou seja, D – M – D'.
A nuvem de fumaça que interpõe a economia clássica da realidade é justamente o mecanismo de capitalização do dinheiro. Para que o dinheiro se multiplique, o capitalista tem que encontrar no mercado uma mercadoria especial “cujo valor-de-uso possua a propriedade peculiar de ser fonte de valor, de modo que consumi-la seja realmente encarnar trabalho, criar valor, portanto.” E essa mercadoria, ele encontra, é o trabalho humano.
A fonte fundamental de capital, ou seja, a fonte de ampliação de valor, é o trabalho humano que o capitalista compra, basicamente, pelo valor de sua manutenção. O que o capitalista adquire é a força de trabalho, em troca da reposição de suas necessidades básicas. Mas é sabido que há muito tempo a evolução das forças produtivas permitiram à humanidade a produção de excedentes. Somente em formas primitivas de agricultura e economia natural, as necessidades humanas consumiam todo o tempo de todos os humanos. Com o estágio desenvolvido da indústria capitalista, as necessidades de produção e reprodução do trabalho, constituem nada mais que uma fração do dia de trabalho do trabalhador, sendo todo o tempo restante extorquido pelo capitalista.
A exploração do trabalho, portanto, é a condição essencial do lucro capitalista. Diferente da economia vulgar e mesmo a escola austríaca contemporânea que identificam a realização do lucro como ato de puro comércio, extorsão do consumidor ou prejuízo do produtor. Segundo Marx, qualquer venda ou compra acima do valor representa a perda de um lado e ganho do outro, não havendo, portanto ganho real no conjunto.
O teorema fundamental da economia marxista, que apresenta interessantes provas econométricas², por exemplo, a apresentada pelo economista japonês Michio Morishima, é o de que a exploração de trabalho excedente é a condição essencial de lucro positivo. Isso, portanto, se desenha como a solução prática do problema fundamental perseguido por Marx e o seu desdobramento atinge os campos mais interessantes da filosofia e teoria política ao permitir a interpretação das estruturas sociais a partir da correlação de forças e o conflito de interesses entre o capital e o trabalho.
Notas:
1. A igualdade entre homens e mulheres, mesmo perante a lei, não existe nem na maioria das sociedades liberais da atualidade, muito menos no tempo em que Marx escreveu a sua obra.
2. Assim como a maior parte das provas produzidas pela economia tem pouco dinamismo empírico, apresentando, do contrário, uma superioridade retórica em relação a teorias adversárias, uma ampla parcela da economia marxista apresenta uma fecundidade de teoremas e construções abstratas de onde derivam as provas de suas leis econômicas. Entretanto, Marx não é cientificista, neutro e nem propõe uma objetividade isenta a suas teorias. No decorrer de sua obra, é sensível opções arbitrárias pelo elemento humano e pela ética hegeliana.
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